sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"O som tem algo de terrorífico". Entrevista com David Toop realizada por Pablo Gianera.



O fato de que a pintura e a música serem artes silenciosas não quer dizer que não contenham uma experiência de audição que não possa escutar nelas alguma informação sonora, além da metáfora que nos autoriza a falar, por exemplo, de “cores estridentes”. Porém, a percepção desta informação, dado que transcorre silenciosamente, requer imaginação; é dizer que é a própria invenção daquilo que se deve escutar.
Em “Ressonância sinistra, o ouvinte como medium”, livro que Caja Negra publicará na Argentina nos próximos dias. O inglês David Toop isolando os cenários de arte e literatura encontrando uma situação, digamos assim, de “escuta”. Pode ser uma passagem de James Joyce, mas também de Virgínia Woolf, de Poe ou de Kawabata, ou um quadro de Vermeer ou de Mark Rothko.
Toop é músico, mas não é sua primeira instância fazer um ensaio sobre música, mas sim uma tentativa de imaginar modos de escutar isso que não está ali para ser ouvido. O título “Ressonância sinistra” provém de uma peça de Henry Cowell, figura tutelar do experimentalismo musical estadunidense, e alguém que não só ocupou de descobrir ou mesmo inventar sons – se é que um som pode ser realmente inventado – mas também, em uma linha que seguiria depois John Cage, de orientar a audição para outras direções, de propiciar novas maneiras de perceber o mundo sonoro.
“Cowell foi um pioneiro que detectava em cada som uma espécie de voz do espírito” – explica Toop enfaticamente. “Depois projetava meios que serviram para dar expressão a essa percepção; Sua peça Sinister Resonance usa uma das técnicas que ele descobriu e que consiste em ativar a ressonância interna do piano e das cordas. Pareceu-me um título perfeito porque encerra a ideia de que há algo terrível na reverberação do som e do espaço, e um ponto que meu livro volta uma ou outra é o porquê o som possui esta qualidade bem mais sinistra”.
Poderia dizer-se que Ressonância sinistra é uma tentativa de resolver a assimetria postulada por Marcel Duchamp nessa ocorrência segundo a qual podemos “ver ver mas não ouvir ouvir?
- Bom, desde já essa é uma maneira de pensar. Propicia nos sentidos uma reação que se opõe aos efeitos distorcidos de uma cultura “visucêntrica” na qual se pensa que as coisas que vemos representam a realidade. Um dos aspectos fascinantes de trabalhar no campo da escuta é descobrir a importância que vem tendo na história dos sons e o ato de ouvir. É um tema que começa a aparecer nos estudos de muitas disciplinas; isto nos revela que na Europa dominou durante séculos uma cultura predominantemente visual que a impulsionou como um modo de pensamento. A experiência da escuta não havia se perdido, simplesmente, não era levada a sério e, portanto, não era reconhecida nem estudada. A ideia de Ressonância sinistra foi rastrear exemplos de cultura “áudio” na literatura, na pintura e outras formas “silenciosas” de comunicação e expressão, sobretudo aquelas anteriores a invenção da tecnologia de gravação. Mas a inteligente observação de Duchamp no conta talvez toda a história. Creio que quando somos sensíveis ao som e desenvolvemos nossa capacidade de audição existe algo parecido a ouvir e ouvir. Em um ambiente silencioso podemos acreditar que essa dimensão da escuta está viva, que ouvimos ativamente. É pura imaginação ou podemos, com uma sensibilidade muito aguda, capturar este ato inobservável da percepção? Há que dirigir esta pergunta à escuta mesma, ao corpo, e não somente ao ouvido.
Até onde modos de ver de John Berger foi um modelo de trabalho?
- Eu diria em três aspectos. Primeiro foi o título que me levou a perguntar-me por que não existia modos de ouvir. Havia ali um vácuo. O segundo foi a afirmação de Berger de que ver é um ato primário.  Ele pensa que a visão é o primeiro ato do ser humano, mesmo quando um bebê ouve sem ver, inclusive antes do nascimento. O terceiro foi o uso que Berger faz da palavra “silêncio”, o silêncio, por exemplo, em Vermeer. Em princípio isto parece discutível. Certos pintores, Vermeer entre eles, criaram cenas que emanam uma quietude e um silêncio palpáveis. Uma vez mais: se toda pintura é silenciosa, por que algumas seriam mais que outras? Tudo isto me fez considerar a pintura do silêncio como uma representação consciente e a buscar outras pinturas nas quais o silêncio tem uma função significativa. Encontrei o exemplo perfeito, uma série de pinturas de Nicholas Maes, artista holandês do século XVII. Estas pinturas mostram explicitamente uma pessoa no ato de escutar; ocorreu-me então a ideia de conceber a pintura como registro, como um gravador de fitas ou digital de seu tempo. Esta singularidade acústica abriu uma dimensão além da “ocularidade” da pintura.
E qual foi, em semelhantes circunstâncias, a maior dificuldade de conseguir que “escutemos” uma pintura ou uma novela?
- Devo dizer que a maior dificuldade consiste em persuadir as demais pessoas de que se trata de uma abordagem verossímil. Falei com alguns historiadores da arte e não se mostraram muito entusiasmados com a conversa. O problema reside na certa condição de inverificável; não posso provar que há som ou escuta em uma pintura, só posso desdobrar observações e evidência que sugerem que existam. A literatura é um caso um pouco distinto devido ao vínculo que existe entre o som da poesia e por aqueles escritores que usam o ouvido mediante a evocação da música em seus textos. Resultou bastante natural identificar momentos de som e audição na literatura. E um torna-se consciente disso, eles aparecem por todas as partes.
 Joyce, justamente, acreditava que havia música em todas as partes. Se assim for, como haveria de escutar o ruído como música ou, em sua especificidade, como “o outro” da música?
- Estou de acordo com Joyce, porém inclusive ele fazia uma distinção entre a música e o ruído de uma porta. Uma vez que se cruza esta linha e começa-se a escutar o mundo como um complexíssimo instrumento musical, tudo depende das circunstâncias. Escuto agora mesmo o som das gotas da chuva e isso instala um fundo para o pensamento. Mas se eu saio à rua e estarei preocupado pelo clima e em não me molhar. Aos seres humanos não interessa estabelecer categorias, separar os tipos de experiência, mas estas categorias estão submetidas a uma revisão contínua. Seus limites são móveis segundo as circunstâncias. Para mim existe um modo de ouvir que é musical e que não tem haver com as atividades humanas. Logo existe um modo focalizado de escutar música que respeita os limites impostos pelo artista e logo um modo de ouvir pragmático que faça que eu corra da rua quando escuto que vem um carro. Mas todos estes modos podem sobrepor-se, são fluídos e podem ocorrer simultaneamente.
Ressonância sinistra não omite a menção de Cage e de Luigi Russolo, mas eles que expandiram o horizonte do audível, não são em nenhum momento o assunto principal.
- Não queria escrever um livro sobre música. Meus livros anteriores se ocuparam da escuta e do som, mas dentro do contexto das formas musicais. Queria dirigir-me aos leitores que não compartilham nem com meus interesses nem com meus gostos, mas que compartilham a preocupação pelas ressonâncias do mundo.
De todo modo seu livro seria inconcebível sem a experiência de vanguarda e experimentalismo, é como se ambos permitiram pensar também problemas anteriores.
Sim, concordo. As ideias que tenho acerca do som e da escuta são o resultado de 45 anos de trabalho como músico e compositor. A teoria procede a prática; o conhecimento, da experiência. Isto nos leva de novo a questão de realinhamento dos sentidos. Isso começou no fim do século XIX com a tarefa de artistas, compositores e escritores experimentais. Agora temos muitíssimos teóricos que escrevem sobre som, ruído, arte sonora, mas os artistas que chegaram primeiro. São eles os primeiros a pensar o impensável.

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